Fontes


Fontes escritas

O Fado enquanto prática musical aparece referenciado desde 1822, sobretudo em romances, diários de viagens, panfletos, jornais e ensaios pessoais. Antes dessa data nada se conhece, tendo a palavra sido usada apenas com o sentido de “destino” ou “sorte”. A maioria destas fontes não são científicas nem tinham em mente o fado como objecto directo da sua observação. Na realidade, a primeira fonte com peso sistemático a descrever o fado enquanto prática musical é o “Dicionário Musical” de Ernesto Vieira [1], que lhe dedicando uma entrada, já em 1890, quando a prática estava já consolidada pelo país inteiro. Essa entrada dá-nos um modelo descritivo do mesmo.

O início do século XX traz-nos dois livros que descrevem o fenómeno de forma exaustiva: a “História do Fado” de Pinto de Carvalho [2] e “A triste canção do Sul” de Alberto Pimentel [3]. Ambos podem ser considerados fontes primárias fundamentais para o estudo do fado, já que descrevem os seus mitos e lendas, hipóteses para as suas origens, assim como descrições da prática, principais temas poéticos e figuras relevantes.

Durante a primeira metade do século XX mais dois livros de grande importância são editados: o “Fado, Canção de Vencidos” é uma compilação de oito palestras, que foram transmitidas na Emissora Nacional, apresentando o fado de uma maneira muito negativa [4]. Todavia, ao fazê-lo, adquiriu extrema importância porque escrutina de forma intensamente detalhada muitos dos seus traços e características, assim como a sua história, os seus valores associados e os da sociedade envolvente. Como reacção a estas palestras, um outro livro defendendo o fado, “Os Ídolos do fado”, exalta as suas virtudes de uma maneira apaixonada, embora extremamente enviesada, citando uma série de personalidades da época e coligindo uma súmula de biografias das mais importantes figuras do meio [5]. Estas duas publicações tornam-se, assim, um riquíssimo testemunho de época e são fontes valiosas para se entender o contexto e como o fado era visto e descrito à altura.

Após este período temos quase um hiato de cinquenta anos em que poucas publicações relevantes aparecem. É certo que há várias, nomeadamente os livros de Barreto [6], Branco & Barreto [7] e Osório [8], ou mesmo uma separata por Frederico de Freitas [9]. Contudo, não são consideradas tão relevantes na medida em que, por um lado, pouco acrescentam ao que já se conhece das publicações anteriores, enquanto que, por outro, há publicações mais recentes que as citam, reinterpretam e contextualizam.

As duas décadas mais recentes testemunharam um aumento significativo do número de académicos e cientistas sociais interessados nas áreas do saber relativo às músicas populares, indústria musical e etnomusicologia em geral, e ao fado em particular. Isto levou ao aparecimento de um considerável número de estudos académicos acerca do fenómeno em várias das suas facetas e a um considerável número de publicações com interesse para a área, nomeadamente artigos em revistas científicas com revisão por pares e dissertações. Alguns destes trabalhos estão fundados em recursos historiográficos do passado, alguns já mencionados, e a sua maioria também coligem informação dispersa de outras fontes, nomeadamente fontes literárias e jornais tentando contextualizá-la e interpretá-la sendo assim mais úteis para o investigador contemporâneo.
No Brasil, José Ramos Tinhorão encontra o que pensa ser um elo de ligação com a prática portuguesa e publica uma teoria detalhada a explicar como, no final do século XVIII, no Brasil, havia uma prática performativa chamada de fado, que incluía a dança como uma forte componente [10]. Ele sustenta que o Fado de Lisboa é derivado e está intrinsecamente ligado a esta dança Brasileira mais antiga. Esta tese é largamente aceite pelos actuais cientistas e foi incorporada e legitimada desde então em todos os estudos subsequentes, encontrando apenas resistência entre público não académico.

Quando, em 1994, Lisboa foi a capital europeia da Cultura, houve uma grande exposição no museu de Etnologia dedicada ao Fado. Este evento conduziu à publicação de um catálogo, “Fado: Vozes e Sombras” que tenta descrever tudo o que foi feito até à data, contendo imensa informação relevante descrevendo a prática performativa [11]. No mesmo ano quer Rúben de Carvalho [12], quer Barreto [13] publicam livros sobre o mesmo assunto. Um pouco mais tarde Salwa Castelo-Branco também dá à estampa um livro inteiramente dedicado à música Portuguesa contendo um capítulo dedicado ao fado, que no fundo é uma descrição bastante detalhada e sistemática da prática, semelhante à que aparecia no catálogo já referido [14]. Um ano mais tarde, uma colecção inteira comemorativa chamada “Um século de fado”, com encadernação de luxo em sete volumes, contendo muitas fotos, transcrições e ensaios foi publicada pela Ediclube [15].

Quer a tese de mestrado, quer de doutoramento de São José Côrte-Real, e os respectivos artigos resultantes da mesma [16]–[19], constituem um corpo de estudos sistemáticos detalhados e bastante relevantes sobre o fado. Nele estão incluídas entrevistas etnográficas com membros das comunidades migrantes de Nova Jérsia, músicos e fadistas (incluindo Amália Rodrigues), bem como documentação relevante dizendo respeito às políticas culturais do Estado Novo.

Rui Vieira Nery, filho do saudoso guitarrista de fado Raúl Nery, é hoje um académico chave na área. Não só é extremamente prolífico em termos de produção escrita, como tem também colaborado em inúmeras iniciativas relacionadas com a divulgação do fado, nomeadamente a já aprovada candidatura do fado a património imaterial da UNESCO. As suas publicações são súmulas historiográficas bastante detalhadas assim como novas hermenêuticas relevantes sobre fontes do passado. Os seus livros “Para uma História do Fado” [20], “Pensar Amália” [21], a entrada “fado” na Enciclopédia da Música Portuguesa do século XX [22], a colecção de ensaios retratando o fado, principalmente através do seu conteúdo lírico, nos primeiros anos da República e durante a Primeira Grande Guerra [23], são fontes muitíssimo relevantes já que representam, muito provavelmente, a mais abrangente descrição do fado, em todas as suas vertentes, até à data.

Daniel Gouveia, não é um académico, mas sim um músico de fado, compositor, e alguém que tem vivido toda a sua vida entre fadistas. Como tal, traz-nos um testemunho muito apaixonado e pessoal sobre a prática e um bastante útil inventário de poemas e repertório [24]. Alberto Sardinha, também um não académico, mas fã apaixonado, recolheu de forma não sistemática, ao longo de décadas, testemunhos vivos locais de pessoas das áreas rurais. Tal trabalho resultou num grosso volume contendo uma série de observações e teorias altamente especulativas em relação à origem do fado [25]. Ambos os livros foram criticados em discussões acaloradas na imprensa por Rui Vieira Nery, louvando o trabalho de Daniel Gouveia e criticando duramente o de Alberto Sardinha [26], [27]. Ainda acerca das origens históricas e mitos sobre o fado, um ensaio anterior tinha sido também publicado por Maria Luísa Guerra [28].

Uma geração recente de investigadores, vindos maioritariamente da Academia, e alguns tendo ligações ao INET-MD, o instituto de Etnomusicologia, Música e Dança da Universidade Nova de Lisboa, tem publicado informações relevantes acerca do fado em artigos científicos, estudos, ensaios, catálogos e dissertações. De entre eles destacamos Pedro Félix, que escreve sobre fado no teatro musical [29]; Pedro Russo Moreira e João Leitão da Silva, que escreveram capítulos muito relevantes acerca de assuntos relacionados com o fado, a indústria musical e políticas culturais nas suas teses de doutoramento [30], [31]. Podemos ainda incluir neste conjunto de trabalhos as dissertações de Ricardo Fonseca [32] e Liliana Rodrigues da Costa [33] que trabalham o fado de um ponto de vista socio-económico, mas também fornecem dados interessantes que podem ser analisados de outras perspectivas. Ainda relevantes são o trabalho de Sara Pereira focado na iconologia do fado [34], e Pedro Pavão dos Santos na questão da identidade [35].

Salientamos ainda o trabalho de académicos que abordaram o fado sobre as perspectivas de espaço e identidade. Michael Colvin estuda o bairro da Mouraria [36], enquanto Richard Elliot disserta sobre como o fado age como um produto cultural reafirmando identidades locais através do recurso à memória social e a uma comunidade imaginada, ao mesmo tempo que torna possível a emergência de um artefacto cultural único exportável com vista à disseminação de um certo imaginário de Portugal no panorama global [37]. Kimberly Holton, uma Portuguesa-Americana, dá-nos ainda uma revisão historiográfica [38]. Foi também publicado recentemente um original estudo empírico acerca das características acústicas e fonéticas da voz de fado [39].

[1] E. Vieira, Diccionario musical contendo todos os termos technicos, com a etymologia da maior parte d’elles … Gazeta Musical de Lisboa, 1890.
[2] P. de Carvalho, História do fado [por] Pinto de Carvalho (Tinop). Empreza da História de Portugal, 1903.
[3] A. Pimentel, A triste canção do sul (subsidios para a historia do fado). Lisboa: Gomes de Carvalho, 1904.
[4] L. Moita, O fado, canção de vencidos …: Oito palestras na Emissora nacional. Oficinas Gráficas da Emprésa do Annuário Comercial, 1936.
[5] A. V. Machado, Os ídolos do Fado: Biografias, Comentários, Antologia. Lisboa: Tipografia Gonçalves, 1937.
[6] M. Barreto, Fado: A canção Portuguêsa. Lisboa: Oficina Gráfica Boa Nova, 1959.
[7] C. Branco e M. Barreto, Portugal do fado. Guimarães, 1960.
[8] A. Osório, A mitologia fadista. Livros Horizonte, 1974.
[9] F. de Freitas, «O Fado, Canção da cidade de Lisboa», Língua e Cultura, n. 3, pp. 225–237, 1973.
[10] J. R. Tinhorão, Fado, dança do Brasil, cantar de Lisboa: o fim de um mito. Editorial Caminho, 1994.
[11] J. P. de Brito et al., Fado: vozes e sombras. Electa, 1994.
[12] R. de Carvalho, As músicas do fado. Campo das Letras, 1994.
[13] M. Barreto, Fado: origens líricas e motivação poética. TFM, 1994.
[14] S. E.-S. Castelo-Branco, Voix du Portugal. Cité de la Musique, 1998.
[15] Ruben de Carvalho, M. Guinot, e J. M. Osório, Um século de fado, 7 vols. Ediclube, 1999.
[16] M. de S. J. Côrte-Real, «Retention of Musical Models: Fado Performance among Portuguese Migrants in New York», Master Thesis, Columbia University, USA, 1991.
[17] M. de S. J. Côrte-Real, «Cultural Policy and Musical Expression in Lisbon in the Transition from Dictatorship to Democracy (1960s-1980s)», PhD Dissertation, Columbia University, USA, 2000.
[18] M. de S. J. Côrte-Real, «Musical Priorities in the Cultural Policy of Estado Novo», Rev. Port. Musicol., n. 12, pp. 227–252, 2002.
[19] M. de S. J. Côrte-Real, «Revising citizenship: migration and fado in the play of identities in the United States», Migrações J., n. 7, pp. 73–96, 2010.
[20] R. V. Nery, Para uma história do Fado. Público, 2004.
[21] R. V. Nery, Pensar Amália. Tugaland, 2010.
[22] R. V. Nery, «Fado», Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Temas e Debates, pp. 433–453, 2010.
[23] R. V. Nery e P. Mateus, Fados para a república. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012.
[24] D. Gouveia, Ao Fado tudo se canta? Linda-a-Velha: DG Edições, 2010.
[25] J. A. Sardinha, A Origem do Fado. Vila Verde: Tradisom, 2010.
[26] R. V. Nery, «Fado Maior e Menor», Jornal de Letras, Lisboa, 02-Ago-2010.
[27] J. A. Sardinha, «Polémica As origens do Fado», Jornal de Letras, Lisboa, 2010.
[28] M. L. Guerra, Fado: alma de um povo ; (origem histórica). Imprensa nacional-Casa da Moeda, 2003.
[29] P. Félix, «O Espectáculo Músico Teatral – Ensaio em dois actos com um prólogo», em O Fado e o Teatro, Museu do Fado/Museu Nacional do Teatro, 2013, pp. 25–79.
[30] P. R. Moreira, «Cantando espalharei por toda a parte: programação, produção musical e o “aportuguesamento” da “música ligeira” na Emissora nacional da Radiodifusão (1934-1949)», Doutoramento, FCSH/UNL, Lisboa, 2012.
[31] J. Leitão da Silva, «Music, theatre and the nation: The entertainment market in Lisbon (1865–1908)», PhD Dissertation, Newcastle University, Newcastle, UK, 2011.
[32] R. X. M. S. Fonseca, «O novo fado: uma leitura transcultural», 2011.
[33] L. Rodrigues da Costa, «Fado – Matriz para uma (nova) Política Cultural Externa. Uma estratégia Cultural ao serviço de Portugal», Master Thesis, Insituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2012.
[34] S. de M. B. Pereira, «Ecos do silêncio : para um estudo iconológico do fado», 2015.
[35] P. R. P. dos Santos, «O fado e as artes : um século de cumplicidades e ambiguidades», Jan. 2015.
[36] M. Colvin, The Reconstruction of Lisbon: Severa’s Legacy and the Fado’s Rewriting of Urban History. Lewisburg: Bucknell University Press, 2008.
[37] R. Elliott, Fado and the Place of Longing: Loss, Memory and the City. Ashgate Publishing, Ltd., 2010.
[38] K. Holton, «Fado Historiography: Old Myths and New Frontiers», P J. Port. Cult. Stud. Winter, pp. 1–17, 2006.
[39] A. P. Mendes, A. F. Rodrigues, e D. M. Guerreiro, «Acoustic and Phonatory Characterization of the Fado Voice», J. Voice, vol. 27, n. 5, pp. 655.e9–655.e15, Set. 2013.

Etnografia

São de destacar um conjunto de estudos académicos recentes, maioritariamente desenvolvidos em Lisboa, consistindo em trabalho de campo rigoroso e sistemático. Constituem um corpo de conhecimento relevante não só pelas dissertações em si, mas sobretudo porque apresentam dados, descrições e entrevistas etnográficas, por vezes nos anexos, que estão disponíveis para serem lidas, estudadas, comparadas, e passíveis de serem submetidas a novas reinterpretações.
Foi desenvolvido, final dos anos 70, no bairro de Alfama, um estudo socio-antropológico no contexto de trabalho de campo. Embora a intenção inicial não fosse essa, a verdade é que acabou por resultar num volume de enorme importância para a compreensão do fado no seu contexto sócio cultural [1].

Os estudos de Oriana Alves e Liliana Sebastião, ambas da Universidade Nova de Lisboa, centram-se em trabalho de campo focado em casas de fado específicas. Já Lilly Ellen Gray, oferece-nos um testemunho valioso e etnográfico de uma académica que passou dois anos a viver em Lisboa, a percorrer diversas casas de fado e a aprender e interagir com pessoas do meio [2]–[5].

Soraia Simões, tem também conduzido uma série de entrevistas etnográficas com músicos, compositores e construtores de instrumentos, que estão armazenadas num arquivo sonoro digital. Parte deste arquivo, chamado “Mural Sonoro” (http://www.muralsonoro.com) está disponível em linha. Soraia Simões também moderou vários debates e tertúlias à roda de temas relevantes ao fado, na tasca típica “A Muralha”, ao longo de 2013 e 2014.

[1] A. F. da Costa e M. das D. Guerreiro, O trágico e o contraste: o fado no bairro de Alfama. Publicaçôes Dom Quixote, 1984.
[2] L. E. Gray, Re-sounding History, Embodying Place: Fado Performance in Lisbon, Portugal. Duke University, 2005.
[3] L. E. Gray, «Memories of Empire, Mythologies of the soul: Fado performance and the shaping of Saudade», Ethnomusicology, vol. 51, n. 1, pp. 106–130, 2007.
[4] L. E. Gray, «Fado’s City», Anthropol. Humanism, vol. 36, n. 2, pp. 141–163, Dez. 2011.
[5] L. E. Gray, Fado Resounding: Affective Politics and Urban Life. Duke University Press, 2013